"Meu Deus", "que tragédia", "quanta tristeza". Quem visita a boate Kiss, no centro de Santa Maria (RS), não consegue dizer mais do que algumas dessas interjeições. Desde domingo (27), o local virou ponto de peregrinação de parentes, vítimas e moradores da cidade. Com a imprensa local comparando a tragédia ao 11 de setembro dos nova-iorquinos, a casa noturna
virou uma espécie de "marco zero" dos santa-marienses.
A polícia ainda não liberou totalmente o acesso à rua onde fica a boate. Um cordão de isolamento ainda separa a população. Quem quiser prestar uma homenagem pode chegar um pouco mais perto e depositar flores ou cartazes em uma espécie de memorial.
A maioria das pessoas, porém, prefere ficar parada, observando a boate. "Quando olho para o prédio, imagino a cena dos guris tentando fugir", afirmou Rubilar dos Santos, 52.
Como todo cidadão santa-mariense, Santos tem sua própria relação com a tragédia. Seu sobrinho está internado em estado grave no Hospital de Caridade, também no centro da cidade. "Quando tentava sair, ele caiu e desmaiou. Alguma alma santa o resgatou. Mas ele inalou muita fumaça", contou.
Clandio Machado, 42, foi acompanhar o filho, Rooney Machado, 19. O jovem sobreviveu ao incêndio e, três dias depois da tragédia, finalmente teve coragem de voltar ao cenário do dia mais triste de sua vida.
"Ele trouxe um buquê de rosas e colocou no memorial, mas se emocionou tanto que precisou sair", disse. Machado trazia consigo a comanda com aquilo que seu filho consumiu no dia da tragédia. "De saúde, meu filho está bem. Mas o psicológico está totalmente abalado. O rapaz chora do nada, come pouco e quase não dorme", lamentou.
A boate fica em uma rua estreita, bem no centro da cidade, atrás de um supermercado. É ponto de passagem obrigatório de quem cruza essa região.
Morador de Santa Maria desde que nasceu, Elvis Eduardo Oliveira, 50, se lembra de quando o prédio abrigava um depósito de bebidas. "A frente da boate é nova, mas o prédio é muito antigo. Há alguns anos, ali era um depósito de bebidas", relembrou.
Para ele, a população visita o local da tragédia porque tem tanta intimidade com o centro da cidade que fica difícil acreditar que um lugar tão popular tenha se tornado um ponto de tanta dor. "É um lugar que simplesmente ficou diferente. O pesar e a tragédia deixaram isso aqui irreconhecível", disse.
Revoltado com os donos da boate, Oliveira disse que perdeu dois primos na tragédia. "Um isolamento acústico barato tirou a vida de dois primos mais jovens", afirmou. Os irmãos José Manuel Rosa Cruz, 18, e Mirella Rosa Cruz, 20, não conseguiram escapar do prédio e morreram dentro da boate. Eram estudantes e não tinham mais irmãos. "Meus tios perderam os únicos filhos que tinham. A Mirella era linda. Chegou a ser rainha do Carnaval. Uma perda absurda", disse, antes de dar as costas à boate e voltar para casa.
Boate atrai legião de curiosos
Não para a romaria de curiosos ao ponto da maior tragédia do Rio Grande do Sul. Na madrugada desta quarta-feira (30), na porta da boate Kiss, gente que não conhecia os mortos estava lá chorando, rezando, levando flores, acendendo velas e exibindo mensagens de protesto.
Tem gente que veio de longe só para ver a Kiss destruída. É o caso de Verônica Andrea da Silveira, 16, de Montenegro (a 200 km). Ela e o namorado Gregory Flores Chaves, 19, vagavam entre os curiosos.
Os dois não conhecem ninguém, nunca foram na boate, mas estavam comovidos: "Eu quero que a prefeitura faça uma praça, um memorial no lugar", pede Verônica – mesmo que o terreno da Kiss fique numa descida, espremido entre dois prédios.
Dona Tiene, 20, trouxe a filha Ana Luíza, 2, para olhar o agito – a menina ficou o tempo todo no carrinho. Um homem que não quis se identificar rezou ajoelhado. Disse que é cigano e paulista. Ele não conhecia ninguém entre os mortos na tragédia.
Um jovem motoqueiro largou o capacete para acender cinco velas. Alguém pintou o nome de Heitor de Oliveira no asfalto, em memória.
Investigações
O delegado que chefia as investigações do incêndio na boate Kiss, Marcelo Arigony, disse nesta terça-feira (29) que o estabelecimento não possuía ao menos dois tipos de alvará de funcionamento desde 2012, e havia feito reformas "ao arrepio de qualquer fiscalização, por conta e risco dos proprietários".
A Kiss estava sem alvará de prevenção a incêndio, de acordo com Arigony, desde 10 de agosto do ano passado, e sem alvará sanitário desde 31 de março do mesmo ano.
"Pelo que apuramos, há uma série de irregularidades no local, mesmo porque havia mais gente que as 691 pessoas autorizadas pelo alvará vencido", disse o delegado. "E as reformas lá dentro, pelos relatos que tivemos, foram ao arrepio de qualquer fiscalização, por conta e risco e feitas de forma temerária. Mas isso ainda vai ser confirmado pela perícia técnica", declarou, salientando que a maior parte das provas coletadas até agora são oriundas de depoimentos de testemunhas.
Extintores supostamente falsificados, falta de iluminação de emergência e o uso de sputniks de uso externo, "por uma questão de economia", foram outras irregularidades na boate Kiss apontadas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul. De acordo com o delegado, a maior parte das provas veio a partir das mais de 40 testemunhas já ouvidas no inquérito, que durará, segundo ele, "no mínimo 30 dias".
Em coletiva de imprensa, a Prefeitura de Santa Maria se isentou de qualquer responsabilidade relacionada ao caso e indiretamente culpou o Corpo de Bombeiros. O secretário de governo do município, Giovane Mânica, afirmou que o alvará de localização da boate está em dia. O documento que compete ao município, segundo ele, foi emitido em abril de 2012 e teria de ser renovado em abril de 2013. "O alvará dos bombeiros compete aos bombeiros, assim como a verificação do número de pessoas que entra na boate também cabe aos bombeiros."
PERGUNTAS A SEREM RESPONDIDAS
A boate poderia funcionar com apenas uma saída de emergência? | Por decreto não poderia. Mas então por que o Corpo de Bombeiros concedeu o alvará de funcionamento? |
Onde estão as imagens do sistema de segurança? | Os primeiros depoimentos dão conta de que a gravação não estaria funcionando |
Os seguranças impediram os clientes de sair da boate sem pagar a comanda? | As informações iniciais dizem que isso pode ter ocorrido antes de eles se darem conta de que estava acontecendo o incêndio |
A reforma recente na boate pode ter contribuído para causar o incêndio? | O teto pode ter sido rebaixado, o que colocaria o material pirotécnico mais próximo de um isolamento acústico altamente inflamável. O delegado que chefia as investigações disse que a casa noturna havia feito reformas "ao arrepio de qualquer fiscalização, por conta e risco dos proprietários" |
Por que os extintores não funcionaram? | A polícia diz que os extintores podem ter sido falsificados |
A iluminação de emergência funcionou corretamente? | Polícia investiga hipótese de as pessoas terem ficado presas no banheiro por não conseguirem enxergar a saída por falta de sinalização adequada e excesso de fumaça |
Donos permitiram a superlotação? | O local, segundo os bombeiros, comportaria 691 pessoas. Mas polícia estima que mais de mil estavam presentes na hora do incêndio |
Em resposta, o Comando-Geral da Brigada Militar publicou uma nota e informou que o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio da boate Kiss, de Santa Maria, indicava que o estabelecimento possuía duas saídas de emergência, adequadas para um ambiente com lotação de 691 pessoas, como era o caso da boate Kiss. E disse ainda que o ingresso de pessoas além da capacidade autorizada é uma responsabilidade dos proprietários, que também não teriam solicitado autorização para o uso de artefatos pirotécnicos no local.
Prisões
O incêndio começou por volta das 2h30 de domingo (27) na boate Kiss, localizada no centro de Santa Maria (RS). Ao todo, 235 pessoas morreram e mais de cem permanecem internadas em hospitais da cidade e de Porto Alegre. A maioria das pessoas que estava na festa, promovida por alunos da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), morreu asfixiada.
A primeira morte entre os feridos foi anunciada nesta terça-feira (29). Com 70% do corpo queimado, Gustavo Marques Gonçalves teve o diagnóstico de morte encefálica confirmado.
A Justiça decretou a prisão preventiva de dois músicos da banda Gurizada Fandangueira --o vocalista Marcelo dos Santos e o produtor Luciano Leão--, bem como dos empresários Mauro Hoffman e Elissandro Spohr --este sob custódia policial em um hospital--, apontados como donos da casa noturna.
As prisões foram motivadas por indícios de que eles estariam prejudicando as investigações com o desaparecimento ou com a manipulação de provas. A informação é da promotora criminal Waleska Flores Agostini, representante do Ministério Público na investigação do caso, que disse que o aparente sumiço de imagens do circuito interno de câmeras da boate caracterizaria obstrução.
Os bens dos donos da boate Kiss também foram bloqueados, a partir da autorização do juiz plantonista do Fórum de Santa Maria (RS), Afif Simões Neto. Ele deferiu o pedido da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que também abrange eventuais bens registrados em nome da boate como pessoa jurídica.
Thiago Varella*
Do UOL, em Santa Maria (RS)
Do UOL, em Santa Maria (RS)
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