sábado, 3 de novembro de 2012

Extremistas da África têm um novo inimigo: a música

Palco do Festival do Deserto, em Timbuktu, no Mali, em janeiro de 2012 (Foto: Alfred Weidinger)

Islamistas ligados à Al-Qaeda proíbem o trabalho de músicos do Mali, entre eles alguns dos maiores artistas da atualidade

A paisagem em transformação, da terra rosada do Sahel para o dourado das areias do Saara, sugeria que o deserto estava perto. A placa mostrava a distância: 33 quilômetros até Essakane, base do Festival do Deserto, evento musical organizado por tuaregues no norte do Mali desde 2001. O ano era 2007. A guerra civil entre tuaregues e o governo central fora formalmente encerrada em 1996, com a queima de mais de 3 mil armas na mítica cidade de
Timbuktu. O clima era de paz, e a música celebrava o presente e o futuro do país. O Festival do Deserto de 2007 emocionou as centenas de estrangeiros que, como eu, viveram a experiência única de três dias de shows ao vivo sobre um palco montado nas areias do Saara. Cinco anos depois, a triste notícia: as armas voltaram a calar os acordes africanos. Dessa vez, carregadas por fundamentalistas islâmicos ligados à Al-Qaeda no Magreb, que tomaram o controle de mais uma rebelião tuaregue por independência. Após aplicar elementos da lei islâmica no norte do Mali, entre eles a punição física de criminosos em público, os fanáticos da Al-Qaeda acabam de fazer o impensável: proibiram a música.
Nesta foto de 31 de agosto, membros do grupo armado de extremistas islâmicos  Ansar Dine em Timbuktu (Foto: Arquivo/AP)
É difícil imaginar uma tragédia cultural de maior proporção em outra parte do mundo. O Mali, de maioria muçulmana e presença constante na lista das nações mais pobres do planeta, com 15 milhões de habitantes e um PIB per capita de US$ 1.100 (um décimo do brasileiro), respira música. Os sons de instrumentos como ngoni (uma minúscula guitarra de madeira), kora (semelhante à harpa) ou djembe (percussão feita com pele de bode) dão vida ao país e identidade à população. Nos últimos 20 anos, transformaram o Mali em um grande exportador de música de qualidade. O bluesman Ali Farka Touré, morto em 2006; seu filho Vieux Farka Touré; os grupos tuaregues Tinariwen e Tartit; o casal de cegos Amadou & Mariam, que há anos põe a Europa para dançar; o gênio do ngoni Bassekou Kouyaté; a cativante voz de Salif Keita; a diva Oumou Sangaré, dona de uma das mais belas vozes do planeta; o rei do balanço Habib Koité; o mago da kora Toumani Diabaté. A lista de artistas do Mali que conquistaram admiradores além de suas fronteiras é interminável. Para o mundo todo, eles têm sido um presente dos berços da humanidade. Para a Al-Qaeda, são agora criminosos em seu próprio país.
Os organizadores do maior evento musical do Mali sabem que não poderão produzir uma nova festa musical nas areias de Essakane enquanto a Al-Qaeda controlar a região. Sabem também que sua música pode ser a maior arma contra os fundamentalistas e decidiram não se render. Nos meses de fevereiro e março de 2013, o Festival do Deserto, que já atraiu astros ocidentais como Robert Plant (Led Zeppelin) e Damon Albern (Blur), do Blur, será realizado fora da região e em outros países, numa caravana típica da tradição nômade dos tuaregues. Será a vez do Festival do Deserto no Exílio. Shows serão realizados em outras cidades do Mali, como Segou e a capital, Bamako, ainda controladas pelo governo central. Três dias de espetáculos no vizinho Burkina Faso e turnês na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia levarão ao exterior o apelo dos músicos do Mali: que sua música não seja calada pelo extremismo religioso.
O cantor e guitarrista Vieux Farka Touré se apresenta em um evento da Fifa em Joanesburgo, na África do Sul, em 2010 (Foto: Michelly Rall/Getty Images for Live Earth Events)
A vibrante diversidade musical do Mali tem origem na mistura de etnias e línguas do país. Bamako, onde se fala a principal língua malinesa, o bambara, é uma capital tipicamente subsaariana, com mulheres exibindo suas belas roupas coloridas pelos mercados da cidade. Na região do Sahel, uma espécie de zona intermediária entre as savanas do sul e o deserto do norte, muitos falam songhai . O povo Dogon, que habita montanhas na região, tem sua própria língua e cultura, enquanto os tuaregues do deserto comunicam-se – e cantam – em tamasheq. Em comum entre eles, além da extraordinária riqueza cultural, está a pobreza material, visível na falta de saneamento básico e infraestrutura por todo o país.
A perspectiva de um Mali sem música assusta seus mais célebres embaixadores culturais. Toumani Diabaté, que gravou o disco “A Curva da Cintura” com Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra, teme pelo futuro do Mali. Diabaté disse ao jornal britânico The Guardian que a música é “a riqueza mineral” do seu país. “Música é o nosso combustível.” A banda Tinariwen, que se apresentou com suas túnicas e guitarras no Brasil em 2011, sempre fez questão de manter a sua própria região como base. Mais precisamente, a cidade de Kidal, no meio do deserto. Nas últimas semanas, Kidal tem sido palco do avanço dos fundamentalistas sobre a música, com apreensão e queima de instrumentos. Artistas locais receberam a ameaça: se voltaram a tocar, seus dedos serão cortados.
O grupo Tinariwen durante uma apresentação no Festival Coachella, na Califórnia, em 2009 (Foto: Michael Buckner/Getty Images)
Alguns integrantes do Tinariwen conhecem bem quem os ameaça. Nos anos 1990, estiveram ao lado de Iyad Ag Ghaly em combates contra tropas do governo do Mali, no levante por mais direitos ao povo tuaregue. Os artistas-combatentes do Tinariwen, que sobre seus camelos carregavam rifles junto às suas guitarras, deixaram a luta armada de lado em favor da música. Ghaly não apenas manteve sua crença no confronto militar como se radicalizou. Tornou-se um islâmico fundamentalista e hoje lidera o grupo Ansar Dine. Depois de vencer as tropas do governo na revolta do início deste ano e declarar a independência da região desértica do Azawad, o Ansar Dine deseja agora impor a sharia (lei islâmica) em todo o Mali. Para isso, aliou-se à Al-Qaeda do Magreb no norte do país. As aspirações de autonomia ou independência do povo nômade do deserto foram sequestradas por aqueles que desejam transformar o Mali em uma espécie de reino talebã. Em agosto, um decreto dos islamistas proibiu a execução de música ocidental na cidade de Gao. “Não queremos a música de Satã”, diz o decreto, segundo oGuardian. “Ela deve ser substituída pelos versos do Corão.”
Enquanto organizam apresentações fora do Mali, os artistas tentam garantir sua segurança pessoal. Em Niafunké, tomada pelos radicais, nenhum músico sente-se seguro. Nascido na cidade, Vieux Farka Touré, estrela em muitos festivais de música pelo mundo afora, em que carrega a chama criativa do seu pai Ali Farka, foi obrigado a deixar a cidade e se abrigar em Bamako. A própria capital, cuja cena musical é uma das mais ricas da África, foi abalada. Depois do golpe militar do início do ano, realizado com a justificativa de reforçar as Forças Armadas para enfrentar a rebelião no norte, o clima é tenso. Bares que antes reuniam moradores e músicos para longas noites de shows informais, estão fechados. As esperanças dos músicos malineses está depositada na comunidade internacional. O Conselho de Segurança das Nações Unidias avalia a possibilidade de formar uma força internacional para colocar um fim ao conflito interno e impedir que o Mali torne-se uma nova base do radicalismo islâmico, como o Afeganistão ou a Somália. Em jogo, está o futuro de uma admirável nação, sempre disposta a compartilhar com o mundo o seu maior patrimônio.
Revista Época

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