A estilista Cris Cabana e a fotógrafa Simone Moralis segmentaram, por acaso, as respectivas carreiras atendendo demandas de um nicho específico em São Paulo: travestis e transexuais. Graças à diversidade da metrópole, conquistaram um público fiel, com alto potencial de consumo.
Há mais de uma década elas atuam no ramo. Por dividirem o mesmo público, acabaram se conhecendo. Segundo Simone, quase todas as suas clientes usam as roupas feitas por Cris durante os ensaios fotográficos.
Os talentos são diferentes, mas a trajétoria das duas profissionais é similar. Ambas fizeram nome, conquistaram uma vida financeira confortável e creditam o empreendedorismo à educação sem vestígios de preconceito, e às "madrinhas" travestis.
Vida de Alice
De fachada amarela, a residência com ares de casa de boneca renova o figurino de travestis e transexuais do Brasil e exterior. Do imóvel na região central de São Paulo, saem peças obviamente sensuais em malotes para variados países da Europa. A calcinha com costura redobrada - que promete segurar o pênis - é a recordista em vendas. Iolanda Cristiane Pereira da Cruz, mais conhecida como Cris Cabana, montou a marca ao lado da mãe, que leva o primeiro nome da confecção: Tereza Cabana.
Tereza, 70 anos, costureira de vocação, deixou o Ceará com a primogênita no colo para tentar a sorte em São Paulo. Cris nasceu em Fortaleza, mas foi registrada na chegada à capital paulista. “Eu nasci no Ceará, mas ela me registrou aqui. Ela diz que sou paulista contrabandeada”, brinca.
Na década de 80, Tereza trabalhava costurando estojos de óculos em uma fábrica na Zona Norte da cidade. Anos depois, quando a empresa faliu, ganhou da antiga patroa uma ajuda de custo e a máquina de costura para garantir o sustento das três filhas. Mudou-se para um apartamento de 27 metros quadrados na Rua Paim, no Centro. Uma vez instalada, passou a costurar para as lojas da Rua Augusta e fazer consertos por indicação.
Em 1998, no boca a boca do bairro, um homem que ela define como "loiro, alto e muito bonito", a procurou interessado em fazer a barra da calça. Durante o atendimento, em uma conversa informal, o jovem perguntou se ela trabalhava com o público travesti. “Naquele tempo a gente tinha aquela ideia de marginais, e minha mãe respondeu: 'não, eu tenho até medo'. Mas ele falou que conhecia alguns e perguntou se poderia levar. Minha mãe deixou”, conta Cris.
Dois dias depois, o tal rapaz voltou à residência. Estava acompanhado de Mônica, a travesti visionária, responsável pelo nascimento da marca Tereza Cabana. “Mônica foi o caminho das pedras. Ela vinha todo final de tarde em casa. Era uma criança de 17 anos. Ela desenhava moda, e me infernizava para fazer vestidos para ela”, contou a estilista.
Cris, à época, tinha uma máquina de overloque. Começou a fazer um modelo bem simples, conhecido no mercado como "tubinho". O nome é autoexplicativo: a roupa tem um corte único, similar a um retângulo. Tomara que caia, colada ao corpo, exige boa forma ou doses extras de autoestima para ser usado. “A Mônica tinha um corpo escultural e ia para a avenida. Fazia um super sucesso. Todo mundo queria saber onde ela tinha comprado aquela roupa.”
Mônica foi a propaganda responsável por transformar o vestido em um modelo de negócio para Cris e Tereza. Em pouco tempo, inúmeras meninas já estavam à porta da costureira em busca dos tubinhos de estampa colorida. “Chegou a ter 20 travestis no apartamento de 27 metros quadrados olhando para mim querendo roupa”, diverte-se.
Desde então, Cris confecciona para tal clientela. A marca começou com o nome Tereza Fashion, mas foi rebatizada para Tereza Cabana. O sobrenome é uma paródia da grife italiana Dolce Gabbana.
Com a ajuda do Facebook, a empreendedora abastece toda sua rede de negócios virtualmente. Produz os modelos de acordo com a inspiração do dia, e compra semanalmente novos tecidos. A costureira, alçada a estilista pelo mercado, usa o próprio corpo esquio para fazer testes caseiros, antes de publicar as novas peças na rede social. "Todos os meus modelitos eu ainda experimento para ver como ficou. Faço atitude ‘trans’ diante do espelho para ver se ficou bom. Olho de trás olho de frente. Eu que sou minha Gisele [Bündchen].”
Aos 45 anos, ela define sua vida como utópica, mágica. “Eu encontrei o ramo certo, o cliente certo. Eu adoro trabalhar, é de domingo a domingo. Hoje eu entendo que sou uma estilista do País das Maravilhas, que é o meu país. Deu muito certo e é fechado.“
Ao cair na toca do coelho do mundo trans, a costureira multiplicou seu patrimônio. Do apartamento de 27 metros, emergiu para uma cobertura no Centro. Também comprou um imóvel na rua onde mora e o transformou em um aconchegante ateliê. Após tantas realizações, resta sonhar em viver no exterior, "em uma grande casa, no meio do mato". De preferência, bem perto do condomínio onde residem galãs de Hollywood. “Ela quer morar perto do George Cloney”, entrega a mãe.
Produtora familiar
Simone Moralis cresceu na plateia da tia, uma travesti vedete, famosa por seus shows em casas noturnas na década de 90. Influenciada por tal universo, direcionar a carreira de fotógrafa para um nicho tão específico foi um caminho quase natural.
Ela conta que acompanhou todo o processo de transformação da tia, hoje operada e mestre em história da arte na Itália, onde vive com o marido. “Ela morava com a gente, crescemos junto. Ela é mais nova que minha mãe, e ajudou muito na minha educação”, contou.
A casa onde residia com a família era uma espécie de camarim antes dos shows. “Foi incrível. Eu tinha uns seis, sete anos e era muito complicado esse lance de transformista. E não tinha onde os amigos da minha tia se vestirem. Minha sempre muito incrível mãe liberou a casa para os amigos da minha tia se produzirem. Eu ficava fascinada, achava lindo tudo aquilo.”
A admiração pelo mundo de plumas e purpurinas refletiu na vida profissional. Aos 18 anos, ela começou a fotografar a tia. Simone já tinha certa intimidade com a fotografia, e fazia testes com a artista. As imagens, assim como os vestidos tubinhos de Cris Cabana, ao caírem no mercado, transformaram a brincadeira em ofício.
“Fazia fotos de show, com esquema de roupa de carnaval, plumas. As fotos ficavam incríveis com essa superprodução. Comecei fazendo foto de vedete, drag queen. E depois apareceram as meninas que anunciam. Elas não tinham nu artístico, não tinham fotos bonitas. Sempre achei feio [o que tinha disponível desse tipo de fotografia no mercado] e sabia que podia fazer um trabalho bonito. Mesmo que seja para anúncio, elas não precisam ser vulgares”, defende a fotógrafa.
Hoje, aos 32 anos, Simone mantém um estúdio no Largo do Arouche, especializado no público transexual e travesti. Além do serviço de fotografia, a produção é filmada e entregue às clientes como um “making off”. O trabalho de vídeo e edição é feito pelos dois irmãos da fotógrafa, sócios na empresa. “Eu vivo disso. Consegui ter um padrão de vida bom com essa clientela. Acho que já fotografei 70% das transexuais do mundo todo.”
Segundo Simone, suas clientes atualizam os books, em média, a cada dois meses. É preciso técnica para agradar e atender as necessidades do público. "Se não souber como fazer vai deixar [a cliente] ainda mais masculina. Não adianta dizer que o photoshop resolve. A modelo quer se ver bonita sem tecnologia. Sem reparos."
A fotógrafa revela que é uma das poucas referências no mercado, tanto brasileiro quanto internacional. Ela afirma que muitas travestis brasileiras que atualmente moram na Europa aproveitam a passagem por São Paulo para agendar sessões de fotos. "Ainda tem muito preconceito, são poucos fotógrafos que trabalham com isso. Durante muito tempo fiquei sozinha no mercado. Pelo menos seis, sete anos. De uns três anos para cá que vem mudando esse cenário."
Lívia MachadoDo G1 São Paulo
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