Em 1935, numa de suas raras visitas à mãe, o tirano soviético Joseph Stálin (1879-1953) se viu diante de um desafio inusitado: explicar qual era, exatamente, sua profissão. “Mamãe, lembra-se do nosso czar? Pois bem! De certa forma, sou o novo czar”, disse ele. Ela não ficou satisfeita: “Pondo tudo na balança, você teria feito melhor virando padre”.
Episódios como esse, narrados no livro A vida privada de Stálin (Zahar, 256 páginas, R$ 54,90), apresentam uma faceta pouco conhecida de um homem que a história eternizou como ditador sanguinário, responsável pela morte de milhões de pessoas nos 30 anos em que esteve no poder. Escrito pela pesquisadora francesa Lilly Marcou, especialista em história do comunismo, o livro reúne documentos pessoais de Stálin e seus descendentes para decifrar a intimidade do personagem. O resultado é uma figura contraditória. Impiedoso e gélido com aqueles que julgava adversários, Stálin jamais deixou de desejar “mil anos de vida” a sua “mamãe”. Constantemente lamentava não ter tempo suficiente para ver seu “Pardalzinho”, a filha Svetlana Alliluyeva. “Ele era uma pessoa terrivelmente contraditória”, afirma Lilly.
As raízes dessa contradição estão, segundo ela, no contraste entre a infância humilde de Stálin e o poder que ele adquiriu ao longo da vida. Stálin nasceu no pequeno vilarejo de Gori, na Geórgia, num ambiente de extrema pobreza. Sua mãe era faxineira e ama de leite na casa de um aristocrata. Seu pai era um homem violento, que agredia mãe e filho. Bom aluno nos colégios locais, conseguiu entrar num seminário, mas não realizou o sonho materno de ter um filho padre. Revoltava-se contra a disciplina imposta pelos padres e articulava motins com seus colegas. Tornou-se revolucionário na adolescência. Aos 26 anos, casou-se com Ekaterina Svanidze, uma mulher submissa e religiosa. Amava-a tanto que aceitou casar-se numa igreja, contrariando a ideologia comunista. Teve com ela apenas um filho, Iakov, que morreu anos depois num campo de concentração nazista. Após a morte da mulher, em 1907, casou-se novamente, com Nadejda Alliluyeva, 20 anos mais jovem que ele e filha de militantes bolcheviques. Com ela, teve dois filhos: Vassili e Svetlana, sua preferida.
Mesmo depois de se tornar a autoridade máxima do Partido Comunista, em 1924, Stálin manteve muitos de seus hábitos antigos. Era constantemente presenteado com valiosas obras de arte, mas passou anos vestindo o mesmo sobretudo que o protegeu do frio durante a Revolução Russa. Viajava com frequência para a cidade de Sóchi, no litoral russo, para se recuperar de crises reumáticas. Lá, costumava colher frutas frescas para enviar a Svetlana.
Sua relação com a mãe era menos próxima. Os dois trocavam cartas afetuosas, mas Stálin raramente ia à Geórgia visitá-la. Seus filhos já eram crescidos quando visitaram a avó pela primeira vez, em 1935. Passaram apenas uma tarde com ela. No resto da viagem, Stálin e sua família se hospedaram na casa dos familiares de Lavrentiy Beria, chefe do NKVD, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Beria era um sádico faminto por poder que se tornou um dos auxiliares mais próximos de Stálin. Segundo Lilly, a forte influência de Beria sobre Stálin foi uma das causas para a onda de perseguições e execuções de oposicionistas ao regime soviético entre 1934 e 1939. Lilly afirma que Beria usava sua influência sobre Stálin para eliminar quem dificultasse sua escalada rumo ao topo da burocracia soviética.
A atenção dada pela história ao temperamento de Stálin e à influência da vida pessoal em suas decisões diminuiu gradualmente a partir do governo de seu sucessor, Nikita Kruschov. Ele foi o primeiro a acusar Stálin de genocídio. As revelações de Kruschov sobre Stálin foram parte de um esforço do Partido Comunista para anular o culto à personalidade do ditador. Durante seu governo, Stálin foi um ídolo popular, cuja imagem paternal era construída pela máquina de propaganda do partido. Ela alimentava o fanatismo. Na Segunda Guerra Mundial, quando Moscou estava ameaçada pelas tropas alemãs, Stálin circulou pelas ruas da cidade num carro conversível, e os jornais fizeram a imagem circular pelo país inteiro. A euforia causada por sua presença no metrô de Moscou com a família, em 1932, provocou tumultos e morte. O fervor stalinista sobreviveu à revelação das barbáries praticadas em seu governo. Depois de 1953, seu jazigo no Kremlin tornou-se um ponto de peregrinação de comunistas. Em 2008, ele foi eleito pelos telespectadores da rede de televisão russa VID o terceiro maior russo de todos os tempos – apesar de ter nascido na Geórgia.
A vida pessoal atormentou Stálin em seus últimos anos. Os depoimentos a que Lilly teve acesso apresentam indícios de que ele nunca superou o suicídio de sua segunda mulher, em 1932. Punia-se moralmente diante de seus cunhados por não ter percebido a tempo as crises de depressão e bipolaridade de Nadejda. Nos jantares de família, Stálin oferecia brindes à memória dela. Também nunca perdoou seu cunhado, Pável Alliluyev, que presenteou a irmã em segredo com um revólver. A morte da mãe, em 1937, aumentou sua solidão. Stálin não foi ao enterro. Ortodoxa fervorosa, ela foi sepultada de acordo com os ritos comunistas. Recebeu do filho apenas uma coroa de flores. O próprio Stálin, que vivia sempre rodeado por familiares, morreu cercado somente por serviçais. Ele pode ter sido traído por Beria. Na noite de 4 de março de 1953, seu apartamento no Kremlin, a sede do governo, estava silencioso demais. Quando seus seguranças entraram no cômodo, encontraram-no quase desacordado sobre uma mesa. A paranoia que cercava Stálin era tamanha que apenas Beria poderia autorizar a entrada de médicos no prédio. Ele não o fez durante toda a madrugada. Quando Stálin foi levado ao hospital, aos 74 anos, era tarde para conter a hemorragia cerebral. Para Lilly, sua morte foi “assassinato por omissão”.
Outra historiadora, Nina Kruscheva, professora de relações internacionais do New School College de Nova York e bisneta de Nikita Kruschov, o sucessor de Stálin, discorda da tese de Lilly de que Stálin tenha sido uma figura ambígua. “O fato de ter sido um ditador desqualifica as coisas boas que ele tenha feito”, disse ela a ÉPOCA. Sua própria família chegou à mesma conclusão. Em 1967, sua filha, Svetlana, o Pardalzinho, pediu asilo político aos Estados Unidos e denunciou os crimes cometidos pelo pai. Os mimos de Stálin a sua filha favorita não foram suficientes para comprar sua lealdade no longo prazo.
FILLIPE MAURO / Revista Época
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